Contos

Queimando o passado

Sinara Foss


Seis ou sete cães brincam no pátio com grama muito verde e folhagens. Ao verem um homem que caminha em zigue zague na calçada no outro lado da rua, correm à divisa para latir. Tobby, um dos cães, porte bem pequeno, acostumado a ir pra fora, impulsiona o corpo peludo, atravessa as varas da grade sem esforço e sai. Confiante, apoiado pelos maiores do lado de dentro, começa a latir para o indivíduo que segura um bastão.
- Sai! Sai,filho da puta! – O andarilho com barba branca,exalando a cachaça, ralha com Tobby que mais se enfurece. Bate os pés no chão para intimidá-lo, mas isso o irrita ainda mais. Tobby aproxima-se devagar, latindo, tentando morder as calças do homem.
O homem risca o bastão no ar de um lado a outro tentando acertar o cão. Fabianka, tutora de Tobby, corre até a rua para ver o que ocorre. Consegue ainda ver o pretinho sendo batido com força e voar longe. Com o golpe, cai com um estampido seco a poucos metros. Os outros cães que observam a cena latem muito. Latidos e uivos, de todos os tons, se fundem numa música fúnebre.
Sem dizer uma palavra Fabianka pega o bastão sujo de sangue da mão do homem que a encara perplexo. Com a voz carregada de ódio grita:
- Desgraçado. Que mal um bichinho de cinco quilos poderia te fazer? O que? Me diz o que?
Fala entre dentes e agride o homem com força. Ele cai. Chuta seu estômago, suas costas, sua cabeça uma vez atrás da outra, até ver um fio de sangue correr livre na calçada.
Fabianka corre até o cão e sem esforço o levanta inerte nos braços. Pega o carro e vai até a clínica veterinária mais próxima. A doutora aperta a boca e diz:
- Não há mais nada a ser feito,Fabianka.. Ele foi muito agredido. Ele já está...
Fabianka treme e lágrimas descem e entram na boca.
A doutora guarda o estetoscópio devagar e fala baixinho depois de um suspiro:
- Infelizmente, casos como esse acontecem muito aqui em nossa cidade. –Soltao ar que estava preso em sua garganta .- Mas vamos pensar nos anos que ele foi feliz ao seu lado. Pense em quantos cãezinhos morrem nas ruas antes de chegar a um ano de vida sem nunca ter tido a chance de serem amados e...
Fabianka sem olhar a médica veterinária levanta a mão aberta para que ela silencie. Nãoconsegue entender porque a sua vida tem que ser assim. A mãe, a única pessoa em quem confiava, morrera uns meses atrás. O pai bebia muito e as abandonou quando tinha uns 3 anos, nunca mais o viu ou soube dele.
Comose fosse um bebê recém nascido, pega o cãozinho sem vida. Não se despede, sai da clínicasem olhar para trás.
Ao chegar na rua onde mora, nota que o barbudo ainda se encontra deitado em frente a sua casa, na calçada. Ele sacode a cabeça, tenta se levantar, mas cai. Fabianka cuida todos os seus movimentos pelo retrovisor, entra no pátio e estaciona o carro na garagem. Não chora mais. Pega um balde vazio na lavanderia e procura uma mangueira. Abre a tampa do tanque de gasolina e introduz o cano transparente. Abaixa a outra extremidade até o recipiente no chãoe suga o ar para que o líquido venha e o encha. Observa a gasolina passeando no cano, sem chorar, sem sorrir.
Caminha com o balde até o portão. Cuida para não deixar os cães saírem.
– Fiquem ai! Já volto!
Sem piscar atira o líquido sobre o homem que já se ergue.
Seus olharesse encontram quando ele diz:
- Você não tem coragem... Você não vai ser capaz disso - diz ele com a roupa, encharcada, as gotas de combustível presas na aspereza do cabelo e barba grisalhos. – Você não está me reconhecendo?
-Estou sim. Claro que estou. Vi na hora que era você, apesar de tanto tempo ter passado..
Fabianka ergue as sobrancelhas e o encara sem mover um único músculo do rosto. Aproxima-se mais e risca o fósforo.

 

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